Enquanto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não regulamenta o plantio e a comercialização da Cannabis para fins medicinais, tramitam no Congresso várias propostas que tratam do assunto. Entre os senadores que apresentaram projetos de lei sobre o tema estão Mara Gabrilli (PSD-SP), Eduardo Girão (Novo-CE), Flávio Arns (PSB-PR) e Paulo Paim (PT-RS).
Em novembro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que é possível autorizar o cultivo e a comercialização da Cannabis no país, desde que sejam atendidas algumas condições: essas atividades precisam ter objetivos exclusivamente medicinais e farmacêuticos; só podem ser exercidas por pessoas jurídicas; e se referem apenas à variação da Cannabis com teor de THC (tetrahidrocanabinol) inferior a 0,3% — de acordo com o tribunal, esse baixo teor de THC retira a possibilidade de efeitos psicoativos.
Além disso, o STJ determinou que a autorização só pode ocorrer depois que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentar essas atividades. Na ocasião, o tribunal decidiu que a Anvisa teria seis meses — ou seja, até maio deste ano — para apresentar tais regras. Em dezembro, a União e a Anvisa solicitaram que o prazo da regulamentação fosse ampliado para 12 meses. Na última quarta-feira (12), o STJ rejeitou o pedido e manteve o prazo inicial.
Mara Gabrilli apoiou a decisão judicial. Segundo ela, o STJ entendeu que há urgência na questão e foi sensível à condição das pessoas que precisam dos medicamentos à base de Cannabis para enfrentar dores crônicas, convulsões, doenças neurodegenerativas ou outras questões de saúde.
— Quem sofre tem pressa! E já são anos de espera — declarou ela em entrevista àAgência Senado, lembrando que o país já possui regulação para a importação desses medicamentos.
A senadora é a autora do PL 5.511/2023 , projeto de lei que regulamenta o setor, prevendo, entre outras, normas para o cultivo e o comércio da cannabis para fins medicinais. A matéria aguarda votação na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA).
Ao defender seu projeto, Mara Gabrili enfatiza que o texto oferece segurança jurídica ao Estado e pode estimular uma maior oferta de produtos nacionais, reduzindo seus preços e tornando mais acessíveis os tratamentos vinculados a esses medicamentos.
A postura do STJ, porém, não tem o apoio de todos os parlamentares. O senador Eduardo Girão, por exemplo, é contra a regulamentação — na forma como foi prevista pelo tribunal — e avalia que a decisão abre um “precedente perigoso”. Para ele, o tribunal concedeu um “tratamento diferenciado” para esse caso, ao contrário do que ocorre com outras plantas com potencial entorpecente que também contêm substâncias utilizadas em medicamentos, como a papoula.
Ele ressaltou que é solidário às pessoas que precisam do medicamento à base do canabidiol (ou CBD, uma das substâncias encontradas na planta Cannabis sativa), mas teme que a regulamentação do cultivo da planta acabe por incentivar o seu consumo recreativo.
O senador argumenta que a decisão do STJ pode enfraquecer as políticas de controle de drogas e gerar consequências negativas para a saúde e a segurança pública.
— Essa disparidade [causado pelo tratamento diferenciado] pode gerar um precedente perigoso e indesejável para o nosso país. Além disso, a Anvisa, declaradamente, não possui profissionais adequados, como agrônomos e botânicos, para regulamentar o plantio de qualquer planta. Isso pode comprometer, inclusive, o processo de regulamentação. Existe o risco de que o mercado seja dominado por atores que não respeitam as normas de segurança e qualidade, que estão apenas preocupados em ganhar dinheiro — disse ele em entrevista àAgência Senado.
Girão é o autor do PL 5.158/2019 . Esse projeto de lei prevê que o canabidiol (ou CBD) será distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com diretrizes a serem definidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e em conformidade com as indicações aprovadas pela Anvisa.
Ele afirma que, dessa forma, a aquisição do produto será feita sob uma fiscalização e um controle rigorosos. A proposta está em tramitação na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE).
Segundo Girão, "não é correto dizer que não existe dispositivo que trata do assunto, pois a Anvisa, na Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 327, de dezembro de 2019 , já se manifestou sobre os riscos do plantio de produtos à base de Cannabis. E em 2019 estabeleceu regras no sentido de regulamentar de uma maneira robusta o uso de produtos à base de Cannabis que podem ser ministrados com objetivo terapêutico".
Assim como a proposta de Mara Gabrilli, o PL 4.776/2019 , de autoria do senador Flávio Arns (PSB-PR), também visa regulamentar o setor.
Entre outras medidas, o projeto de lei de Arns autoriza o plantio controlado da Cannabis exclusivamente para fins medicinais. Também determina que só podem se dedicar a essa atividade as pessoas jurídicas devidamente autorizadas pelo órgão público competente.
O texto proíbe o plantio por pessoas físicas e também proíbe o uso recreativo da planta. Além disso, submete os produtos à base da Cannabis ao regime de controle especial de medicamentos, a serem vendidos exclusivamente em farmácias — a não ser quando sua distribuição for realizada por associações especificamente constituídas para esse fim, mediante prescrição médica de seus associados.
A proposta de Flávio Arns está em análise na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE).
O senador Paulo Paim (PT-RS), por sua vez, apresentou um projeto de lei para garantir à população carente o acesso gratuito aos medicamentos à base de Cannabis: o PL 89/2023 .
O fornecimento do produto (nacional ou importado) seria feito nas unidades de saúde públicas e privadas conveniadas ao SUS, mediante apresentação de receita médica e desde que respeitadas as normas e regulamentos da Anvisa.
Essa matéria também está em tramitação na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE).
Na justificativa do projeto, Paim destaca que o Poder Judiciário já concedeu liminares para autorizar a produção por associações (que, mediante prescrição médica,distribuem aos seus associados produtos derivados da Cannabis), além de conceder liminares para autorizar importações e o autocultivo.
Mas ele ressalta que,“embora haja medicamentos à disposição dos pacientes, e tenha havido uma disseminação na classe médica sobre os benefícios da sua prescrição”, esses produtos ainda “têm elevado custo, tornando-se proibitivos para milhares e milhares de pacientes”.
Paim observou que vários estados vêm alterando (ou tentando alterar) suas legislações para incluir esses medicamentos entre os oferecidos pelo SUS.
Para Mara Gabrilli, as propostas relacionadas à Cannabis não têm avançado no Congresso porque, entre outras razões, muitos parlamentares não têm conhecimento suficiente sobre o tema. Ela diz que vários congressistas até conhecem o termo "cannabis medicinal", mas não entendem os efeitos positivos que as diferentes substâncias derivadas dessa planta podem gerar.
— Por exemplo: um óleo de cannabis mais rico em CBD [canabidiol] pode beneficiar pessoas com epilepsia refratária e convulsões. Mas quem tem esclerose múltipla, tipos raros de câncer, dores neuropáticas ou espasmos talvez se beneficie mais com um óleo mais rico em THC [tetrahidrocanabinol]. E a interação dos princípios ativos da cannabis é essencial para muitas condições e doenças.
Além disso, ela reitera que o objetivo da regulamentação do plantio não é o uso recreativo da Cannabis.
— A discussão no Parlamento não pode cair numa vala ideológica que desvirtue o foco da discussão, que é a saúde pública, as oportunidades econômicas e a justiça social. Negar os efeitos medicinais da Cannabis alegando risco de incentivo ao tráfico é gerar fake news. Nosso desafio é acabar com a desinformação e com o preconceito. Precisamos avançar, como grande parte do mundo já fez.
A senadora também lembra que, em 2019, uma pesquisa do DataSenado solicitada por ela indicou que quase 80% dos entrevistados apoiavam a distribuição de medicamentos à base de Cannabis no SUS.
Até outubro de 2023, a Anvisa já havia autorizado 31 produtos derivados da Cannabis, atendendo a pedidos de pacientes que não respondiam aos tratamentos disponíveis no país: 19 desses produtos foram identificados como CBD (canabidiol) e 12 foram identificados como extratos de Cannabis.