Por Crispiniano Daltro
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de compartilhar as funções da Polícia Militar com as Guardas Municipais – vide matéria no final do texto - vai muito além de uma simples medida administrativa. Na verdade, essa decisão parece ser uma estratégia velada de enfraquecimento do poder dos governadores estaduais, muitos dos quais se posicionaram contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, de autoria do atual Ministro da Justiça - ex-ministro do STF, Ricardo Lewandowski.
O que parece ser uma reorganização funcional pode, na prática, representar o início do fracionamento das Polícias Militares nos estados. Com essa medida, parte dos efetivos poderá ser absorvida pelas Polícias Civis, enquanto a maior parte, composta por praças, poderá migrar para as Guardas Municipais. Estas, por sua vez, seriam rebatizadas como Polícia Municipal, assumindo funções de policiamento ostensivo e preventivo em áreas urbanas.
Essa transformação, se concretizada, pode significar, em um único ato, a desmilitarização efetiva das Polícias Militares. Um movimento que, curiosamente, remonta ao período do regime militar, quando, em 1969, as Guardas Civis e as Forças Públicas foram extintas, dando lugar às atuais Polícias Militares - que passaram a ser consideradas forças auxiliares e reservas do Exército Brasileiro.
O ciclo, ao que tudo indica, parece prestes a se fechar. A decisão do STF pode significar o fim de uma estrutura militarizada que, desde o regime militar, serviu como braço de apoio às forças armadas. O impacto dessa mudança será profundo, não apenas no modelo de segurança pública, mas também no equilíbrio de poder entre os entes federativos e o governo central.
Vale destacar que, em termos legais, conduzir alguém em flagrante não é uma função exclusiva das polícias - até mesmo o cidadão comum está autorizado por lei a realizar tal ato. No entanto, o que foi vetado às Guardas Municipais são as funções típicas da Polícia Civil, como investigar crimes, realizar perícias, instaurar inquéritos policiais, conduzir interrogatórios, lavrar flagrantes, estabelecer fianças, solicitar prisão temporária ou preventiva, e qualquer outra atribuição diretamente relacionada à ação criminal investigativa.
Agora, no que diz respeito às funções de policiamento ostensivo — anteriormente de competência exclusiva das Polícias Militares -, as Guardas Municipais passam a ter autorização para atuar de maneira concorrente. Em outras palavras, essas corporações poderão exercer atividades de patrulhamento preventivo e ostensivo, o que amplia significativamente seu papel na segurança pública urbana.
O que o STF atirou parecia ser uma simples redefinição de competências. Mas o que acertou, talvez sem intenção explícita, foi o próprio cerne das estruturas de poder e segurança do Estado brasileiro.
O desdobramento dessa decisão pode abrir um precedente inédito e de grandes proporções, desencadeando uma verdadeira reconfiguração institucional da segurança pública no país. Ao redistribuir as funções policiais, o STF não apenas altera o papel das corporações, mas também provoca uma mudança no jogo político, reduzindo a influência dos governadores sobre as forças de segurança estaduais e fortalecendo a presença do governo federal no controle dessas instituições.
Além disso, a possível transformação das Guardas Municipais em Polícias Municipais com funções ostensivas pode gerar novos desafios operacionais e jurídicos. Isso exigirá uma reestruturação de comandos, redefinição de hierarquias e a criação de novas doutrinas de atuação - um processo que pode gerar insegurança jurídica e operacional durante a transição.
Outro ponto que merece atenção é o risco de conflitos de território entre as forças de segurança. Com a sobreposição de funções entre as Polícias Militares e as Guardas Municipais, existe a possibilidade de disputas por espaço e competência, o que pode comprometer a eficiência do sistema e gerar instabilidades operacionais. Espera-se, portanto, que haja uma regulamentação clara e um esforço de cooperação entre as corporações para evitar confrontos e garantir que a população não seja prejudicada por disputas institucionais.
No fundo, essa decisão pode ser vista como um movimento silencioso, mas decisivo, no redesenho da segurança pública brasileira. Um ato que, embora apresentado sob a justificativa de modernização e eficiência, pode estar pavimentando o caminho para um novo modelo de poder, em que a centralização das forças de segurança atende a interesses que vão muito além da proteção do cidadão.
Resta saber se o verdadeiro impacto dessa medida será, de fato, o fortalecimento da segurança pública - ou se o Brasil assistirá a um novo capítulo de tensões institucionais, com consequências que poderão se estender por gerações.
(*) Crispiniano Daltro é administrador, pós-graduado em Gestão Pública de Municípios/UNEB, foi Coordenador e professor do curso de Investigador Profissional/Facceba. Investigador de Polícia aposentado, foi presidente do Sindicato dos Policiais Civis do Estado da Bahia, também foi Coordenador da Federação dos Trabalhadores Públicos da Bahia (FETRAB).
Atualmente, além de sua militância, ele compartilha reflexões e análises nos sites Página de Polícia e O Servidor, onde mantém a Coluna Crispiniano Daltro. Sua atuação abrange discussões sobre segurança pública, política e direitos trabalhistas, consolidando-o como uma voz ativa na busca por justiça e reconhecimento profissional para os servidores públicos.
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