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POLÍTICA DE DROGAS E SEGURANÇA PÚBLICA: Desafios e Caminhos para uma Abordagem Racional e Estratégica*

Orientações que busquem equilibrar repressão qualificada com ações voltadas à prevenção e reinserção social tornam-se essenciais para a construção de um modelo de segurança mais eficaz e sustentável.

Carlos Nascimento
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/EDIÇÃO N.266
27/02/2025 às 11h03 Atualizada em 27/02/2025 às 11h13
POLÍTICA DE DROGAS E SEGURANÇA PÚBLICA: Desafios e Caminhos para uma Abordagem Racional e Estratégica*

A discussão sobre drogas e segurança pública no Brasil exige um olhar fundamentado na realidade empírica. O modelo repressivo adotado nas últimas décadas demonstrou ineficiência e resultou em impactos sociais graves, especialmente para a população mais vulnerável. A experiência latino-americana nos ensina que a relação entre drogas e criminalidade é complexa, e que políticas exclusivamente punitivas não reduzem a violência associada ao tráfico nem afetam o mercado ilegal.

O Brasil gasta cerca de R$ 1,2 bilhão apenas para manter presos acusados de tráfico de drogas, a maioria deles pequenos vendedores ou usuários. Estima-se que mais de 30% da população carcerária esteja condenada por crimes relacionados à Lei de Drogas. Dados do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC)[1] revelam que, somente em 2023, o Brasil gastou R$ 7 bilhões na “guerra às drogas”, sem impacto significativo na redução do consumo ou do tráfico. Enquanto isso, o tráfico continua lucrativo, movimentando bilhões anualmente e fortalecendo as organizações criminosas que controlam esse mercado.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública[2], o encarceramento por crimes tipificados pela Lei de Drogas tem aumentado desproporcionalmente em relação a outros delitos, com destaque para a prisão de jovens negros e periféricos. O estudo também indica que, em estados com maiores taxas de prisões por tráfico, não há uma redução correspondente na violência, o que reforça a ineficácia da abordagem repressiva.

A lucratividade do negócio ilegal, impulsionada pela proibição, levou à infiltração do crime organizado nas forças de segurança e na administração pública. Casos de policiais envolvidos no desvio de drogas apreendidas, na proteção de traficantes e na extorsão de comunidades são recorrentes, criando um ciclo de violência e impunidade. Além disso, os altos lucros do tráfico têm financiado campanhas eleitorais e influenciado decisões políticas, enfraquecendo as instituições democráticas e dificultando reformas necessárias na legislação sobre drogas.

A complexidade da questão criminal tem se intensificado nos últimos anos, com o crescimento das organizações criminosas e a diversificação de suas atividades para além dos mercados ilegais tradicionais. Além do tráfico de drogas e armas, observa-se um aumento expressivo nos roubos e furtos praticados dentro de redes criminosas estruturadas, delitos praticados pela internet e negócios envolvendo postos de gasolina e outros nichos para a lavagem de dinheiro obtido nos mercados ilegais, como demonstrou a recente pesquisa publicada pelo FBSP, Follow the products: rastreamento de produtos e enfrentamento ao crime organizado no Brasil[3].

Essas dinâmicas impõem novos desafios aos gestores da segurança pública, bem como aos policiais civis e militares e aos membros do Poder Judiciário, que precisam encontrar formas de responder ao medo e à insegurança da população e ao poderio criminal dessas organizações sem comprometer os princípios do devido processo legal e os direitos e garantias fundamentais dos acusados. Nesse sentido, políticas que busquem equilibrar repressão qualificada com ações voltadas à prevenção e reinserção social tornam-se essenciais para a construção de um modelo de segurança mais eficaz e sustentável.

Diante desse cenário, propomos um redirecionamento das políticas públicas sobre drogas no Brasil com base em cinco pilares principais:

Revisão da legislação sobre drogas – É fundamental diferenciar usuários de traficantes, com critérios objetivos que impeçam a criminalização desproporcional. A recente decisão do STF, ao estabelecer uma quantidade mínima de 40 gramas de cannabis para a caracterização do tráfico e descriminalizar o usuário, é um avanço, mas não é suficiente. É preciso incluir critérios objetivos para diferenciar usuários e traficantes também para outras drogas, assim como revisar a legislação vigente, retirando do sistema penal o usuário e garantindo um tratamento mais justo ao pequeno vendedor de drogas.

Países como Portugal adotaram a descriminalização do consumo e implementaram medidas de redução de danos, resultando em quedas significativas nos índices de uso problemático e overdose[4]. No Uruguai, a regulamentação do mercado da cannabis resultou na redução do mercado ilegal, abrindo aos usuários a possibilidade de abandonar os circuitos ilícitos.[5]

Políticas de redução de danos e tratamento de dependentes – O consumo de drogas deve ser tratado como uma questão de saúde pública, não de segurança pública. No Brasil, programas como o Consultório na Rua[6] têm demonstrado eficácia no atendimento a populações vulneráveis. No exterior, a Suíça implementou políticas de fornecimento controlado de heroína para dependentes graves, reduzindo drasticamente mortes por overdose e a criminalidade associada ao uso problemático[7].

O investimento na prevenção e no tratamento reduz custos sociais e melhora a qualidade de vida dos indivíduos afetados.

Enfrentamento à violência sistêmica e ao encarceramento em massa – O encarceramento de pequenos traficantes apenas alimenta as organizações criminosas e agrava as condições carcerárias. É essencial implementar políticas de prevenção mais eficientes e com menor custo social e econômico, como a manutenção do jovem na escola e programas de assistência social para famílias vulneráveis. O Brasil pode se inspirar em modelos como o da Alemanha, que aposta em alternativas penais e reabilitação em vez do encarceramento em massa[8]. A ressocialização dos egressos do sistema prisional deve ser prioridade, garantindo-lhes oportunidades de trabalho e acompanhamento pós-pena.

Estratégias para enfrentar as organizações criminosas – As organizações criminosas que coordenam o mercado ilegal de drogas diversificaram suas atividades, interferindo no sistema político e corrompendo forças de segurança. O combate efetivo ao crime organizado precisa de um fortalecimento da inteligência policial e da cooperação internacional para o desmantelamento das redes criminosas. O “follow the money” é uma estratégia essencial. É necessário fortalecer os mecanismos de investigação financeira para apreender ativos oriundos do tráfico e impedir que as facções ampliem seu poder.

Qualificação do debate público: A resistência ao avanço das políticas de drogas está profundamente ligada à guerra cultural, na qual setores conservadores utilizam discursos criminalizantes e populistas para angariar apoio popular. Esse discurso, muitas vezes simplista e pautado pelo medo, impede a implementação de soluções mais eficazes e baseadas em evidências. Superar essa barreira exige um esforço coordenado de diversos setores da sociedade para qualificar o debate público e apresentar alternativas viáveis e sustentáveis.

Nesse sentido, uma estratégia essencial é a ampliação do diálogo entre pesquisadores, gestores públicos, sociedade civil e lideranças políticas comprometidas com uma abordagem mais racional. Fortalecer redes de pesquisa e criar espaços de debate qualificado pode contribuir para dissipar mitos e disseminar informações baseadas em experiências bem-sucedidas no Brasil e no mundo. Além disso, é fundamental que essa agenda envolva também os atores diretamente impactados pelas políticas de drogas, como comunidades vulnerabilizadas e profissionais da segurança pública.

No âmbito legislativo, a construção de consensos sobre a política de drogas tem se mostrado uma tarefa complexa e, muitas vezes, inviável, dada a polarização do tema. No entanto, avançar na reforma dessa política é essencial para mitigar os impactos da criminalização e do encarceramento em massa. Para isso, faz-se necessária a criação de uma ampla frente parlamentar que una diferentes setores da sociedade civil, promovendo um debate plural e fundamentado. A articulação entre parlamentares, especialistas, movimentos sociais e entidades de direitos humanos é vital para formular alternativas viáveis que contemplem tanto a regulação de substâncias com potencial terapêutico quanto a implementação de políticas de redução de danos. Apenas com um esforço coordenado e a inclusão de múltiplos atores será possível transformar o atual modelo proibicionista em uma abordagem mais racional e eficaz.

A formulação de políticas eficazes exige que se vá além de respostas meramente repressivas e se adote um modelo que integre o enfrentamento dos problemas de saúde pública, estratégias de prevenção ao delito em regiões periféricas e programas direcionados à juventude.

A reorientação da política de drogas não significa negligência ou permissividade, mas a adoção de estratégias mais eficazes para reduzir a criminalidade violenta e enfraquecer o mercado ilegal. Experiências já implementadas em diferentes países demonstram que o investimento em saúde pública, educação e alternativas socioeconômicas para populações vulneráveis reduz a reincidência criminal, diminui os custos do sistema penal e melhora os indicadores de segurança. Se o objetivo é uma sociedade mais segura, não há alternativa senão enfrentar esse debate com seriedade e compromisso com políticas que produzam resultados concretos e mensuráveis.

REFERÊNCIAS

* Intervenção realizada em audiência pública realizada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária em Porto Alegre em fevereiro de 2025, com o tema “Descriminalização das Drogas: Uma Abordagem Estratégica para Combater o Narcotráfico dentro e fora do sistema prisional”

[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/seguranca/audio/2024

[2] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023.

[3] https://publicacoes.forumseguranca.org.br/

[4] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/02/internacional/1556794358_113193.html

[5] https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg6wq3l7x1lo

[6] https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saps/consultorio-na-rua

[7] https://hri.global/wp-content/uploads/2022

[8] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/8907762/

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo - Sociólogo, professor titular da Escola de Direito da PUCRS, membro do Comitê Gestor do INCT-InEAC e Coordenador de Segurança Pública do IBCCrim.

fontesegura.forumseguranca.org.br/EDIÇÃO N.266

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