O Carnaval de Salvador é uma das coisas mais deliciosamente difíceis de se definir. É uma confusão de sentimentos, gerada por uma mistura social e racial, ao mesmo tempo em que acontece dentro do maior apartheid social e racial do mundo.
A Divisão da Festa
Na última década do século passado, a festa se dividia assim:
Os que não tinham dinheiro: ficavam na pipoca, curtindo os blocos gratuitamente.
Os ousados com pouco dinheiro: compravam um bloco barato.
A classe média: frequentava os blocos mais caros.
A burguesia: preferia os bailes exclusivos nos salões dos clubes chiques de Salvador.
Memórias de Pipoca
Cresci na pipoca da Piedade, antes mesmo do circuito Barra-Ondina existir. Minha mãe nos levava para assistir aos blocos da frente da loja Zinas, junto com a galera dos Barris. Era uma experiência incrível: víamos todas as grandes atrações sem sair do lugar e só gastávamos com água mineral.
Os “pobres premium” desfilavam no bloco do Jacu, com suas mortalhas azuis e o corvo preto do desenho Faísca e Fumaça como símbolo. Outros blocos populares incluíam Apaxes, Comanches, Frenesi, Tiete Vips, Kassuá e Gula. Já os blocos afro, como Ilê Aiyê, Muzenza, Olodum, Araketu e Filhos de Gandhy, representavam a força da cultura negra no carnaval.
Enquanto isso, a classe média endinheirada desfilava no Camaleão, Crocodilo, Os Internacionais, Papaléguas, Beijo, Cheiro de Amor… Muitos desses blocos exigiam ficha de inscrição, dados pessoais e foto para aprovar quem poderia comprar a mortalha. Negros, brancos “fora do padrão” e moradores da periferia eram, muitas vezes, barrados. As meninas usavam até o endereço da casa da minha avó, nos Barris, para tentar passar na seletiva. Um absurdo para os dias de hoje? Nem tanto.
A Evolução (Ou Não) do Carnaval
Com o tempo, mais opções surgiram para a peãozada. A prefeitura passou a promover carnavais nos bairros periféricos, tirando parte da população dos circuitos tradicionais. A pipoca segue forte, mas as ruas estão mais vazias e, ao meu ver, nunca tive um carnaval tão seguro: sem brigas, sem furtos, sem roubos… nem beijo o povo tá roubando mais.
Os pobres premium saíram das cordas, pois os blocos pequenos morreram. Hoje, o poder público financia trios independentes com bandas que antes tocavam nesses blocos.
A classe média migrou dos blocos caros para os camarotes absurdamente caros. Criaram até uma passarela para os ricos assistirem aos pobres de longe… mas deu errado.
A Segregação Musical
A música também segregou. O axé é dominado pelos brancos, com apenas Margareth como expoente negra no panteão da Axé Music: Bell, Ivete, Daniela, Durval, Saulo, Tomate, Aline, Claudia, a menina do Cheiro, o menino do Eva… tudo branco. Enquanto isso, os negros reinam no pagodão e nos blocos afro.
De novidade e coisa boa, só vi a BaianaSystem. Um fenômeno musical, cultural, social, interracial, político, artístico… uma síntese de tudo que há de bom no carnaval da Bahia! Por outro lado, tem umas bizarrices que particularmente, eu não gosto não. Esses trios tocando arrocha, sertanojo, bloco da Anitta, são novidades desnecessárias.
Leva o trio, motô!
No fim das contas, o Carnaval de Salvador segue o mesmo roteiro do século passado: segregação social e racial lado a lado com a mistura de classes e casais interraciais.
Aliás, uma curiosidade: o quilo do homem hétero tá mais valorizado que café e ovo! O número de mulheres sempre foi maior que o de homens na festa, e agora o de homossexuais também cresceu exponencialmente. O governo já pode criar um Programa Fome Zero para a mulherada hétero solteira, porque está difícil para elas. Como disse uma amiga: existem três categorias de homens – os héteros casados, os gays maravilhosos e os héteros feios.