Nestas eleições, os policiais não podem reclamar da força que adquiriram. Dados do Tribunal Superior Eleitoral tabulados pela empresa ASK-AR a pedido da Piauí mostram que foram eleitos 50 Prefeitos e 809 Vereadores oriundos da área de segurança. Dos cerca de 8 mil profissionais ligados às forças de segurança (polícias e Forças Armadas) que se lançaram candidatos em 2020, cerca de 10,2% foram eleitos. Foram consideradas como candidaturas policiais e das forças de segurança todas aquelas cujos titulares declararam como profissão bombeiro militar, membro das Forças Armadas, militar reformado, policial civil, policial militar ou nome na urna de cunho militar.
Conseguir 10% de sucesso nas candidaturas é um percentual alto para um tipo de carreira específico. Indica que os policiais que enveredam para a política partidária consolidaram um espaço político significativo e que não pode ser visto apenas como fruto do cenário de medo, violência e crime do país. Os resultados das eleições deste ano mostram que, se por um lado o direito de participação de policiais na política, assegurado pela Constituição de 1988, está garantido e precisa ser respeitado, por outro lado a baixa governança da forma como esse direito é exercido pode provocar privilégios e precisa ser repensada.
Em um exemplo prático, um policial que deseja ser candidato deveria se desincompatibilizar de sua função nos mesmos prazos e condições de qualquer outro servidor público, em abril do ano da eleição. Contudo, em um privilégio inoportuno, os policiais podem aguardar a confirmação dos seus nomes pelas convenções partidárias, por volta do mês de agosto de um ano eleitoral, para se afastar e concorrer ao cargo pretendido. São ao menos quatro meses de vantagem sobre os demais servidores públicos, nos quais a população continuará associando suas imagens às suas respectivas corporações.
Ou seja, nenhuma outra carreira pública trabalha com limites tão fluidos e que viabilizam uma taxa de sucesso eleitoral tão significativa. Mas essa taxa não é igual em todos os estados e, em alguns, ela é ainda maior. Ainda segundo os dados da piauí, do total de policiais candidatos aos cargos de vereadores no estado de Mato Grosso, 21,5% deles foram eleitos. Naquele estado, 1 em cada 5 candidatos policiais ao cargo de vereador conseguiu se eleger – a capital, Cuiabá, elegeu três policiais militares para vereador. Outros doze estados elegeram, proporcionalmente, mais policiais do que a média de 10,2% anteriormente mencionada. Entre eles, vale destacar Alagoas, com 18,5%; a Paraíba, com 14,7%; e o Rio Grande do Norte, com 14,4%.
No Amazonas só 3,4% dos policiais candidatos ao cargo de vereador conseguiram se eleger. No Rio de Janeiro, esse percentual é de 5,4%. E, em São Paulo, de 8,2% – na capital, São Paulo, nenhum policial militar foi eleito vereador. No Ceará, palco do motim dos policiais militares em fevereiro deste ano, 9,4% dos policiais candidatos se elegeram – Sobral, local do confronto entre policiais amotinados e o senador Cid Gomes, que avançou sobre o quartel da PM com uma retroescavadeira, não elegeu nenhum policial.
Entre os partidos, o MDB elegeu 19,8% dos policiais que se candidataram a vereador pela legenda (18,6 se somados todos os cargos), seguido pelo PP, com 18,5%, e pelo PSD, com 17%, em um sinal de que a centro-direita conseguiu um desempenho muito superior aos partidos de direita. O Republicanos, que abriga os filhos do presidente Jair Bolsonaro e é tido como braço auxiliar da Igreja Universal, elegeu apenas 8,5% dos policiais candidatos a vereador que nele encontraram abrigo. E esse percentual é inferior àquele obtido pelo PT, que elegeu 9,7% dos policiais que se candidataram aos cargos de vereador pela agremiação. Quem mais perdeu foi o PSL, que só conseguiu eleger 7,5% dos policiais que se candidataram pelo partido este ano.
Diante desses percentuais, uma mudança importante ajuda a entender tal movimento: em 2018, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 77,7% dos policiais candidatos estavam em partidos de direita e ultradireita. Em 2020, só 57,5% dos policiais saíram candidatos por tais partidos. Os partidos de centro-direita, que tinham perdido espaço em 2018, ganharam quase toda essa diferença e lançaram 30,2% dos policiais candidatos. Uma das explicações é o pragmatismo dos policiais para aproveitarem a força da estrutura partidária. O MDB, por exemplo, lançou 40,8 mil candidatos a vereador no país e elegeu 7.320 (17,9%), proporção um pouco menor que a observada entre os policiais candidatos da legenda.
Para o cargo de prefeito, é destaque o fato de que dois delegados, sendo uma mulher, estão no segundo turno em capitais: o Delegado Eguchi, em Belém, e a Delegada Danielle, em Aracaju. O Capitão Wagner está na disputa em Fortaleza. A Major Denice, em Salvador, ficou em segundo lugar, mas naquela cidade o primeiro colocado venceu em primeiro turno. Com exceção desta última, filiada ao PT, os três nomes anteriores flertaram com o bolsonarismo em algum momento das suas campanhas, mesmo que modulando o discurso ora em direção do combate à corrupção defendido pelo ex-ministro Sergio Moro, ora pelo discurso de ordem conservadora mais associado ao presidente Bolsonaro.
Por falar em Sergio Moro, os dados gerais aqui analisados ajudam na compreensão das razões do retrofit de imagem que ele está tentando emplacar a partir da divulgação do seu encontro com Luciano Huck. Para manter laços e vínculos com o universo policial, Moro precisa seguir a tendência dos policiais em 2020 de caminharem para o centro, até como forma de se descolar dos bolsonaristas radicais. Sem o apoio de policiais do Centrão, Moro terá grandes dificuldades para conseguir se viabilizar como um dos nomes estratégicos de 2022 – vale observarmos como será o diálogo de Sergio Moro com o Capitão Augusto, do PP, líder da chamada Bancada da Bala na Câmara dos Deputados, que deve se lançar candidato à presidência da Câmara no lugar de Rodrigo Maia, do DEM.
Em um balanço geral, para além de Sergio Moro, o PSL deixou de ser o porto seguro dos policiais candidatos, do presidente Jair Bolsonaro e das Polícias Militares – cujos representantes tiveram menos sucesso proporcional do que os policiais civis e federais, seguindo o padrão das últimas eleições desde 2010. Os policiais militares, que cresceram com o discurso de ordem conservadora e antipolítica que tomou conta do país em 2018, perderam fôlego e precisarão repensar seus posicionamentos para os próximos pleitos, bem como terão que se reaproximar das pautas cotidianas da comunidade.
Bolsonaro perdeu o posto de porta-voz dos policiais e deve redobrar as promessas de soluções radicais na área, ainda mais quando os índices de criminalidade violenta voltaram a crescer e tiraram dele a bandeira eleitoral da queda da violência (isso sem contar com a agenda anticorrupção, que havia sido abandonada por ele). Só lhe resta o confronto escatológico, nos dois sentidos que os dicionários dão à palavra, como estratégia de remobilização de sua base eleitoral e de retomada do protagonismo.
Do outro lado do espectro ideológico, a esquerda e a centro-esquerda não ganham e nem perdem espaço. O destaque aqui fica para a eleição do investigador da Polícia Civil do Rio Grande do Sul Leonel Radde (PT), oitavo candidato mais votado em Porto Alegre e membro do grupo de Policiais Antifascimo, objeto de um dossiê ilegal elaborado pela Secretaria de Operações Integradas – SEOPI, ligada ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública.
Em suma, os dados sobre policiais candidatos e eleitos em 2020 revelam que não podemos mais negligenciar o debate da segurança pública. Se queremos garantir os direitos de todos, incluindo os dos policiais, temos que romper com a inércia e construir um modelo de reforma das polícias mais eficiente e efetivo. As próprias polícias não podem acreditar e/ou se acostumar com o discurso de ultradireita que valoriza confronto e a violência e que tem dado o tom das políticas públicas na área. Vale ressaltar a gestão e seus limites organizacionais e legais como um espaço de aprendizado que pode ser mais bem explorado.
As eleições de 2020 mostram que há, sim, espaço de resistência; há espaço político para acabar com a força dos mercadores da morte e para valorizar as polícias como instituições-chave de uma democracia dinâmica e plural.
Por Renato Sérgio de Lima
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Professor da FGV EAESP e Diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública