Por Carlos Zacarias de Sena Júnior
No dia 25 de outubro de 1975, o diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, atendeu a uma convocação do Exército para prestar depoimento sobre suas ligações com o PCB. O PCB era alvo de uma ofensiva da repressão que havia desbaratado quase todas as organizações da luta armada e agora se voltava para o “partidão, uma das poucas agremiações de esquerda que haviam se recusado a empunhar armas.
Herzog compareceu à sede do DOI-CODI, no II Exército, que até dezembro de 1974 havia sido comandada pelo então major Brilhante Ustra, conhecido como Dr. Tibiriçá. Testemunhas disseram que Herzog negou sua ligação com o PCB, mas mesmo assim foi torturado. Rodolfo Konder, um dos presos na ocasião, testemunhou à Comissão Nacional da Verdade (CNV): “De lá, podíamos ouvir nitidamente os gritos – primeiro do interrogador e depois de Vladimir, e ouvimos quando o interrogador pediu que lhe trouxessem a “pimentinha” [instrumento de tortura para a aplicação de choques elétricos] e solicitou ajuda de uma equipe de torturadores. Alguém ligou o rádio, e os gritos de Vladimir se confundiam com o som do rádio”.
No dia seguinte à prisão, uma nota assinada pelo general Ednardo D´Avila Mello, comandante do II Exército, dizia que Herzog havia se suicidado por enforcamento. A farsa foi logo percebida por conta da posição em que o corpo do jornalista foi fotografado, pois ninguém conseguiria se enforcar com os joelhos flexionados e os pés no chão.
Vladimir Herzog virou um importante símbolo de denúncia do legado de violência, farsa e censura da ditadura militar, mas somente agora, 50 anos depois, sua viúva fará jus à uma reparação pecuniária do Estado. Por decisão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que acatou sentença proferida pelo juiz da 2ª Vara Federal Cível do DF, Anderson dos Santos Silva, Vladimir Herzog foi considerado anistiado político. Anistiada em abril passado, Clarice Herzog, que tem 83 anos e padece do mal de Alzheimer, terá direito a uma pensão vitalícia de R$ 34.577,89, valor calculado pelo cargo ocupado pelo marido à época de seu assassinato.
Graças ao trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desparecidos Políticos (CEMDP), em 2013 a certidão de óbito de Herzog foi alterada, sendo apontada como causa mortis “asfixia mecânica por enforcamento” provocada por “lesões e maus-tratos sofridos durante interrogatório em dependência do 2º Exército (DOI-CODI)”. Em 2014, a CNV concluiu que o jornalista “foi estrangulado”, provavelmente com uma cinta, seguindo-se a montagem de “um sistema de forca, onde uma das extremidades foi fixada à grade metálica de proteção da janela e, a outra, envolvida ao redor do pescoço”.
No momento em que se fala de anistia e ditadura, é ainda mais oportuno que se discuta o tema. Para que nenhum brasileiro confunda a ditadura que tivemos com a democracia que temos e pela qual lutamos. Ditadura, nunca mais.
Carlos Zacarias de Sena Júnior (Professor do Departamento de História da UFBA)
(Jornal A Tarde, Salvador, 21/03/2025)