Não é novidade diagnosticar o crescimento da letalidade policial na sociedade brasileira, fenômeno que tem sido observado desde a segunda metade da década passada. Entretanto, é preciso reconhecer a desigualdade da magnitude do fenômeno nas diversas unidades da federação. Se por um lado Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro são destaques negativos pelos elevados patamares de civis mortos em ações policiais, por outro Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Minas Gerais vinham mantendo tal letalidade sob relativo controle.
O caso de Minas Gerais merece atenção especial. Entre 2017 e 2023, a taxa de letalidade policial no estado manteve-se estável, oscilando em torno de 0,7 morte por 100 mil habitantes. Em números absolutos, foram 130 civis mortos em ações policiais na média anual do período. O mais interessante é que, no mesmo espaço de tempo, a incidência de crimes violentos no estado caiu mais de 50%, com destaque para os homicídios e os roubos. Minas Gerais atingiu em 2023 os menores níveis de criminalidade violenta dos últimos 25 anos. É uma marca admirável, considerando que a violência policial manteve-se baixa para os padrões nacionais.
O ano de 2024 constitui ponto de inflexão negativo nessa trajetória virtuosa, infelizmente. Foram registradas 166 ocorrências de letalidade policial em Minas Gerais no ano passado, vitimando 195 pessoas. Em comparação com o ano anterior, constata-se um crescimento de 41,9% no número de ocorrências e de 46,6% no número de vítimas em ações policias, especialmente militares. Trata-se do maior patamar de letalidade policial na história recente do estado de Minas Gerais.
E contrariando mais uma vez a percepção de senso comum, a criminalidade violenta retoma trajetória ascendente. Entre 2023 e 2024, os homicídios cresceram 22% em Belo Horizonte, 16% na Região Metropolitana de Belo Horizonte e 4,6% em todo o estado. Ou seja, a ascensão da letalidade policial não implicou redução da criminalidade violenta no estado. Ocorreu exatamente o oposto.
A partir da leitura dos históricos das ocorrências, verifica-se o contexto em que os fatos estavam inseridos. Parte significativa dos casos refere-se a ações relacionadas ao tráfico de drogas, o que corresponde a 30,1% do total. Os fatos vinculados a roubo ou furto e abordagens de pessoas suspeitas também apresentam participação relevante, somando, respectivamente, 20,5% e 18,1% do total das ocorrências de letalidade policial. Destaca-se, por fim, a presença significativa de ações decorrentes de cumprimento de mandados, no patamar de 12,7%.
Ao observar a quantidade de vítimas por ocorrência, a maior parte (84,8%) resultou em um óbito. Ocorrências com duas vítimas somam 13,4% do total. No que diz respeito ao perfil das vítimas de letalidade policial, destaca-se que a maioria delas é do sexo masculino (98%), negra (57,4%) e com menos de 30 anos completos no momento do óbito (66,7%). Destaca-se ainda que 10,3% das vítimas eram adolescentes (com menos de 18 anos de idade) e a vítima mais jovem tinha 14 anos. O conjunto dos autores das ocorrências compreende 424 policiais, sendo 416 (98,1%) policiais militares e 8 (1,9%) policiais civis. A maioria dos policiais participou de uma ocorrência que resultou em óbito no ano de 2024. Os indivíduos participantes de duas ou mais letalidades compõem 12,4% do total de autores. Nesse contexto, verifica-se que, considerando o efetivo da Polícia Militar de Minas Gerais (36.362), os policiais militares autores de letalidade no ano de 2024 representam 1,1% do efetivo da organização.
Não dispomos por enquanto de estudos científicos que ofereçam explicações para elevação tão súbita e preocupante da letalidade policial em Minas Gerais. Defendo a hipótese de que um episódio ocorrido em janeiro de 2024 tenha sido decisivo nesse sentido: o assassinato do sargento da PMMG Roger Dias, baleado na cabeça numa abordagem a um criminoso que estava em saída temporária. O impacto público desse assassinato foi enorme, culminando inclusive na aprovação de legislação federal que praticamente acabou com as “saidinhas dos presos” no Brasil. Tudo leva a crer que os policiais militares mineiros, em alguma medida, passaram a adotar procedimentos menos técnicos na abordagem a suspeitos. Há claro risco de esses procedimentos menos técnicos se institucionalizarem na subcultura dos profissionais da linha de frente da organização. Do ponto de vista sociológico, se não houver objetiva limitação por parte do governador, do secretário de Estado da Justiça e Segurança Pública e do Comando da PMMG, o estado de Minas Gerais tende a combinar nos próximos anos crescimento na incidência de homicídios e paralelo crescimento da letalidade policial.
Os dados aqui esboçados estão detalhados em relatório divulgado pelo Observatório do Controle Externo da Atividade Policial de Minas Gerais (OCEAP – MG), que é resultado de acordo de cooperação técnica entre o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), através do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos, Controle Externo da Atividade Policial e Apoio Comunitário (CAODH) e a PUC Minas. Trata-se de parceria institucional pioneira no Brasil que tem por objetivo a produção de conhecimento científico que possa subsidiar a atribuição de controle externo da atividade policial por parte do MPMG. Seria muito bem-vinda a replicação desse modelo de parceria em outros estados brasileiros.
Luis Flavio Sapori
Professor da PUC-MG e associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
EDIÇÃO N.269 | fontesegura.forumseguranca.org.br/
Clique na IMAGEM e acesse a Coluna Fonte Segura/PÁGINA DE POLÍCIA, espaço destinado para publicações de artigos dos articulistas do Fonte Segura/Fórum Brasileiro de Segurança Pública.